terça-feira, 14 de agosto de 2012

VOTEM EM MIM PORQUE SOU LÍDER NA IGREJA




A conjuntura eclesiástica e a política evangélica

Vivemos num momento contraditório da caminhada evangélica. No âmbito cultural, há uma revalorização do fenômeno evangélico por parte de sociólogos e analistas sociais. Os juízos mais ideologicamente restritos vêm sendo superados. Agora, para o antropólogo John Burdick, a suposta “alienação” pentecostal seria justamente fonte de mudanças efetivas porque cria comunidades de descontinuidade e transformação. Para a antropóloga Elizabeth Brusco, a religião evangélica enfrenta o machismo com mais eficácia do que o feminismo. Para o antropólogo Luiz Eduardo Siares, representa a emergência de uma nova sociedade igualitária. Para a cientista política Aspásia Camargo, sinaliza o nascimento de uma verdadeira sociedade civil. O antropólogo Rubem César Fernandes diz que os evangélicos hoje são o movimento que fala de mudança radical de vida de maneira mais convincente, enfrentando as questões de dinheiro, doença, crise moral e familiar. “Já está maduro o bastante para falar para o resto do país e que o faça com humildade porque está apenas começando a compartilhar os problemas mais amplos”, um alerta sábio para o triunfalismo evangélico de direita ou de esquerda. A crise do Rio de Janeiro trouxe à tona a contribuição evangélica silenciosa que se dá no dia-a-dia. Segundo Zuenir Ventura em Cidade Partida, “Mais do que a polícia, a Justiça, a Igreja Católica, a família e a escola, os evangélicos são a contracultura da droga”. Na revista Veja, um diretor de uma organização não-governamental afirma que “os evangélicos são hoje a alternativa ao narcotráfico, a principal resistência em termos de produção de identidade, de conjunto de valores, de respeito pela força comunitária. Já é hora de não mais considerar os pastores de terno e gravata que vão recitar a Bíblia nas praças públicas como imbecis politizados”.

Porém, na esfera política, o quadro é muito diferente. As tendências predominantes na política evangélica, a corporativa e a triunfalista, são desvios que põem em risco tudo de positivo que o crescimento evangélico pode representar na sociedade brasileira. É verdade que há até uma certa melhora na imagem pública evangélica na mídia, o que, sem dúvida, tem a ver com o crescimento continuado dos evangélicos, constituindo-se em mercado e eleitorado importantes. O mercado evangélico é visto não apenas como uma boa área de negócios especializados mas como fatia significativa do mercado nacional cujas sensibilidades não devem ser ofendidas gratuitamente. Esse fato é o principal responsável pelo início de uma guinada para a maior respeitabilidade social.

Embora o triunfalismo e o corporativismo às vezes se misturem, o corporativismo ainda é mais forte, sobretudo no caso da Igreja Universal, que além de eleger deputados estaduais, federais e até um senador, fundou o seu próprio partido. Mas não pensemos que a esquerda esteja isenta desses fenômenos. Ela também começa a buscar candidatos evangélicos recém-chegados que possam somar votos para a legenda, e há até casos de conversões que parecem ser interesseiras em épocas eleitorais por parte de políticos de esquerda, um costume antes restrito a outros pontos do campo ideológico.

Algumas lições e sugestões

As eleições e, especialmente, a alternância no poder, nos mostram, como mostraram para a esquerda em geral, que a desgraça alheia não é necessariamente colírio para os nossos olhos. A ideia de que, se o ex-presidente Fernando Henrique se revelou um desastre, isso vai favorecer Lula, é fruto de um pensamento messiânico em que só se enxerga duas opções. Da mesma forma, os evangélicos não podem esperar que os escândalos e fracassos da política nos sejam necessariamente favoráveis. Não basta esperar que todos venham até nós por falta de opção. É necessário construir alternativas viáveis.

A nossa mensagem, sem abrir mão dos temas progressistas clássicos, tem de apresentar ganchos com as preocupações concretas da comunidade evangélica como ela de fato é, não com a comunidade evangélica idealizada dos nossos sonhos.

Frei Betto, criticando o discurso tradicional da esquerda, diz que agora “nenhum discurso político terá ressonância se não passar pelos novos fatores de mobilização: segurança e qualidade de vida, defesa do meio ambiente, ética e subjetividade, mística e espiritualidade”. Traduzindo em nossos termos, nenhum discurso político evangélico terá ressonância se não passar pelos fatores evangélicos de mobilização: o crescimento da igreja, a família, a idolatria, a defesa da vida, a honestidade... Assim como Paulo, precisamos aprender, no bom sentido, a ser judeu com os judeus e grego com os gregos. É verdade que precisamos também colocar na pauta da comunidade evangélica outros temas com os quais ela não tem se preocupado, mas também temos de ser sábios, falando sobre os temas já presentes. Vejamos alguns exemplos.

Primeiro, a moral. Quando alguém fala à preocupação evangélica com a moralização da vida pública por meio dos fatos da vida pública recente, apontando exemplos de atuação transparente, e da fiscalização ética, é um trunfo para sua aceitação junto às igrejas.

Em segundo lugar, encaminhar e apoiar reivindicações institucionais legítimas das igrejas, ajudando-as com os trâmites burocráticos, protestando contra medidas discriminatórias, entre outras. Nem tudo que é corporativo é corporativista.

Em terceiro lugar, a questão da família. É um chavão evangélico falar em defesa da família. Pois bem, vamos inclusive falar em defesa da família via políticas econômicas que realmente permitam uma vida familiar estável. É irônico que muitos políticos evangélicos tenham uma retórica de defesa da família e votem diariamente projetos que minam a base de uma vida familiar estável. Essa é uma incoerência que temos de apontar: sim, nós defenderemos a família e vamos ser coerentes nessa defesa. Temos de ler os indicadores sociais pensando em como fazer esse gancho. Por exemplo, o número de famílias vivendo em situação de miséria absoluta nas grandes cidades cresceu nos últimos anos. Desempregados, alguns homens buscam trabalho em outras regiões ou passam a beber ou abandonam a casa. Entre os mais pobres, muitas famílias são chefiadas por mulheres. Está aí um gancho convincente para a defesa evangélica de políticas progressistas.

Em quarto lugar, há as questões ditas comportamentais. É preciso educar a comunidade evangélica a respeito da diferença entre moralidade e legislação, entre coisas que devem ser corrigidas pelo trabalho político e outras que devem ser corrigidas pela evangelização e ensino, e entre as intenções de uma lei e os efeitos colaterais às vezes nocivos. Mas é evidente também que a pobreza precisa ser combatida em dois níveis: com reformas estruturais, diminuindo a injusta distribuição de renda; e com políticas que incentivem o comportamento individual responsável e solidário. E creio que a contribuição específica da esquerda evangélica pode ser uma visão mais integrada, a junção entre preocupações estruturais e econômicas e preocupações comportamentais, unidas pela ética da teologia integral. Pois existe um custo social diferente para cada “estilo de vida”, cada “opção de sexualidade”, cada “arranjo doméstico”. E isso é o que esperaríamos, já que as leis de Deus não são arbitrárias. Por isso, é possível defender politicamente os padrões bíblicos, não segundo a sua autoridade religiosa (não aceita por todos), mas segundo as suas consequências sociais e econômicas. Neste sentido, a esquerda talvez tenha de optar entre seus grupos “culturalmente xiitas” (que são pequena minoria na sociedade) e as maiorias religiosas. Uma pesquisa recente mostrou que enquanto apenas 29% dos parlamentares do Partido dos Trabalhadores (bem abaixo das porcentagens para outros partidos) se opõem à maior liberalização do aborto, os eleitores petistas não se diferenciam dos eleitores de outros partidos nessa questão. Quanto ao matrimônio entre homossexuais, somente 29% dos congressistas petistas acham que devem continuar proibido, versus 63% dos eleitores petistas. Sei que essas questões são complicadas, mas percebemos um hiato entre os parlamentares e os eleitores de esquerda. Isso é um argumento útil dentro da igreja e dentro dos partidos.

Organizações para-eclesiásticas, ONG’s, o Movimento Evangélico Progressista — MEP e até mesmo as igrejas precisam ir além da conscientização política da comunidade evangélica para a formação política, a formação de quadros. Promover encontros de formação que inclua base teológica do engajamento político, experiências cristãs na política do mundo moderno, história dos evangélicos na política brasileira, análise de conjuntura e algo sobre a viabilidade e organização de campanhas e o exercício de um mandato.
Façamos debates sobre o processo eleitoral. É claro que a política é muito mais do que eleições. Mas também é verdade que as “bancadas evangélicas” determinam muito a imagem pública, e que necessitamos de modelos. Não podemos ficar à mercê de entidades com nomes pomposos que surgem em épocas eleitorais como veículos disfarçados para a candidatura do próprio líder.

É claro que políticos evangélicos que dizem “vote em mim porque sou líder na igreja, sou bom evangelista ou cantor etc.”, o que é uma tentativa descabida de converter capital religioso em cacife político, não seriam aceitos. Também não seriam aqueles que dizem “vote em mim porque uso um discurso acentuadamente religioso”, o que coloca a busca da afinidade entre candidato e eleitor no nível da forma do discurso e não no nível do conteúdo. De fato, existem maneiras de ligar religião e política eleitoral que são péssimas: o objetivo de favorecer seu grupo religioso, ou de impor a moral pessoal e social de sua religião sobre a população. Mas existe também uma maneira boa: a das propostas no mercado das ideias, na esperança de que elas venham a ser influentes na sociedade, independente de a maioria ser da nossa religião ou não, na base (muito firme na teologia bíblica) de que os valores cristãos não são arbitrários mas correspondem à realidade do ser humano e do universo.

Enfim, para apoiar candidatos, as entidades e organizações sociais precisam investir na formação de quadros; discutir a elaboração de propostas concretas; ter reuniões para escolher nomes que sejam éticos, articulados, viáveis do ponto de vista de sua reputação evangélica, temperamentalmente apropriados e suficientemente conhecidos no meio evangélico ou que tenham outras bases não-evangélicas; entre outros. É verdade que somos minoria e os vexames evangélicos não vão acabar tão cedo. Falta muito ainda; estamos longe de virar a esquina, mas começamos a fazer a curva. Começa nos projetos sociais evangélicos e na publicidade favorável na mídia. Começa na visão mais positiva que sociólogos e analistas sociais estão dando sobre os evangélicos. Começa na atuação irrepreensível de parlamentares identificados como evangélicos. O povo evangélico está sedento de modelos. Os evangélicos progressistas poderão ser uma presença estabelecida, embora ainda pequena, no cenário político brasileiro. E, como parte de uma coalizão de forças, implementar boa parte de sua agenda legislativa e de transformação da cultura política. Espero ainda viver para ver esse dia na minha velhice. Como disse Martin Luther King: “Vamos marchar sobre as urnas, até que enviemos às câmaras municipais, às assembleias legislativas e ao congresso pessoas que não tenham medo de fazer justiça, amar a misericórdia e andar humildemente com seu Deus”.


p. 2 de Religião e Política, Sim; Igreja e Estado, Não
Paul Freston, Editora Ultimato

Portal Batista

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