A campanha eleitoral: raiz de todos os males
Época de eleições. Campanha
nas ruas e na televisão. Entre os candidatos a prefeito e vereador, há
muitos evangélicos, talvez mais numerosos do que nunca. Algumas
denominações fazem um esforço coordenado para marcar presença na
política municipal e vários deputados evangélicos querem governar as
suas cidades. Entre a indiferença e o entusiasmo, o eleitorado
evangélico se prepara para votar.
O
ceticismo toma conta de muitos. Afinal, a performance dos políticos
evangélicos em geral tem deixado a desejar nos últimos anos. Embora as
análises desses evangélicos pessimistas divirjam, estão de acordo que
não há remédio: qualquer nova leva de políticos evangélicos padecerá dos
mesmos defeitos ou de outros igualmente nocivos.
Mas
outros evangélicos ainda são otimistas. Alguns porque negam as críticas
comumente feitas à classe política evangélica, outros porque estão
sempre na busca de uma fórmula que supere as limitações constatadas,
seja por meio de um corporativismo mais eficiente, seja pelo surgimento
de um “messias” político evangélico.
Em
uma conferência para um grupo de evangélicos de vários países do
Terceiro Mundo, um africano, creio que do Quênia, fez um questionamento
que poderia ter vindo de um brasileiro. Ele disse:
— Um
evangélico entra na política porque é uma pessoa de muitos dons e os
outros acham que ele poderá ser a solução para os problemas da nação. E
quando já está lá, ele perde completamente o contato com seu ministério
anterior e a igreja o deixa pairando no ar. Ele perde a direção, pelo
menos com relação à visão que tinha quando começou. Da mesma forma,
pergunto até que ponto o dom carismático entra nisso, porque muitas
vezes quem tem mais dons é o mais antidemocrático. Ele acha que ninguém
mais pode tomar o seu lugar, e o povo diz que “ele é o nosso homem”, até
que surja outra pessoa e ocorra uma divisão.
A
pergunta toca em duas feridas abertas da comunidade evangélica, tanto
aqui como (pelo que parece) em outros países: os políticos que
decepcionam (culpa deles? culpa da igreja?) e os líderes personalistas
antidemocráticos dentro da própria igreja, um modelo frequentemente
transferido para a política. A minha resposta na ocasião, agora um pouco
recheada, foi a seguinte: este é um exemplo da transferência de
práticas do campo religioso para o campo político. Se temos na igreja
esse modelo de líder messiânico que pensa possuir todos os dons
carismáticos em si mesmo (ao contrário do modelo neotestamentário, que
diz que todos os cristãos têm dons, mas ninguém tem todos os dons, e por
isso precisamos viver e presidir em comunidade), existe a tendência de
transferir o modelo para a nossa ação política também.
Por
que o cristão que entra na política tantas vezes “dá errado” depois?
Claro que pode haver um problema individual: alguns candidatos são
totalmente despreparados. Mas não devemos pensar essa questão em termos
de falhas individuais. Há limitações da igreja
que se revelam aqui. Na vida pública, as falhas da igreja se tornam
muito mais visíveis. Elas sempre existiram, mas eram mais privadas e
quase ninguém reparava. A gente não “deu errado” de repente porque
entrou na política. Sempre tivemos esses problemas mas não os
enxergávamos. Isso porque trata-se de uma questão de poder. Quanto mais
poder existe em uma situação, mais graves parecem ser os erros. Mas as
tendências sempre existiram. A situação de poder apenas revela a verdade
que não víamos antes.
Precisamos
pensar essas questões em termos de modelos. Não é só questão de preparo
individual (habilidades e virtudes), embora estas também sejam
importantes. Um modelo comum no Brasil é a candidatura autogerada. Um
indivíduo se considera possuidor de dons ou então se sente vocacionado.
Talvez tenha tido uma revelação, uma visão, um sonho... Aliás, a
respeito disso, se você teve uma revelação para se envolver na política,
se envolva. Mas não fale da sua revelação para ninguém, não a utilize
como arma para constranger outros a apoiar você. Já houve vários
exemplos na América Latina de evangélicos candidatos a presidente
dizendo que tinham uma revelação... E aí, quando não ganhavam, tinham de
explicar o porquê.
Mesmo
em casos nos quais o candidato não reivindica uma revelação, o desejo
de se envolver é muitas vezes autogerado. Então, a pessoa se deixa
exposta, porque entra em situações nas quais o poder está muito mais
presente, e não sabe como lidar com isso.
O
segundo modelo, igualmente problemático, é o modelo institucional,
corporativista, no qual a igreja como instituição (ou pelo menos o
grande líder carismático) se mobiliza e diz: “vamos nos envolver na
política, vamos ter candidatos”. Isso traz enormes problemas. A política
é reduzida a um corporativismo, a um meio de conseguir coisas para a
igreja como instituição. Parece que por trás disso há uma ideia de que a
sociedade nos deve pagar um tipo de imposto porque nós temos a verdade,
temos o direito de ser ajudados. Esse é um estranho conceito de missão,
que é muito relacionado com a corrupção, o fisiologismo e o
oportunismo, porque você precisa conseguir recursos estando próximo do
governo ou de interesses poderosos.
Esses
dois modelos são muito dúbios. Precisamos de um terceiro modelo, um
modelo comunitário, que não é individualista nem corporativista. O
envolvimento deve ser como parte de um grupo, mas um grupo (quer seja
somente de evangélicos quer inclua não-evangélicos) constituído para
fins políticos e sem interesses institucionais para defender. Isso dá um
elemento de responsabilidade, de prestação de contas, de transparência.
Dá também um elemento de responsabilidade ideológica, de que você está
envolvido com um certo projeto político, uma certa visão do que
significa ser cristão na política, e que você será responsável perante
aquela visão ideológica. Existe no Brasil o Movimento Evangélico
Progressista (MEP). Eu gostaria que existisse também um Movimento
Evangélico de Centro (MEC) e um Movimento Evangélico de Direita (MED).
Gostaria de ver movimentos evangélicos do mesmo tipo do MEP, no quadro
político, com propostas diferentes e concorrendo pelo voto evangélico,
mas de maneira legítima e séria, procurando educar e conscientizar o
povo evangélico a votar e se envolver com consciência. Isso seria um
sinal de maturidade democrática. Seria possível ter debates acalorados
mas sérios e respeitosos. Infelizmente, isso não existe. É impossível
ter um debate sério sobre evangélicos e política porque as pessoas
envolvidas nos outros dois modelos fogem dos debates. Por isso,
precisamos incentivar esse modelo comunitário de engajamento político evangélico, para evitar os males do isolacionismo e do institucionalismo.
Então,
o estilo do mandato pode ser em grande parte previsto pelo modelo da
candidatura e pela natureza da campanha. O estilo de campanha determina o
mandato. Os acordos feitos com lideranças evangélicas, o tipo de apelo
feito ao eleitorado evangélico, as ingenuidades alimentadas entre o
eleitorado, a relação construída na campanha em termos de expectativas
levantadas e de “dívidas” (literais e figuradas) contraídas — tudo isso
determinará o mandato. O candidato que se “endividou” na campanha de
formas inconciliáveis com a democracia, ou com a justiça social, ou com a
diferença entre moralidade e legislação (nem todas as partes da moral
cristã devem ser matéria de legislação), ou com a correta separação
entre igrejas e Estado, com certeza decepcionará durante seu mandato.
Mas isso deve ser surpresa somente para os ingênuos. O favorecimento
institucional será um presente de grego para as igrejas, criando
dependências, incentivando hipócritas, amarrando a boca profética. O
candidato precisa educar os ingênuos e frear os sedentos de poder e de benesses.
O
âmago de tudo isso é a grande questão ausente dos nossos debates
teológicos: o poder. Tanto o personalismo individualista como o
institucionalismo corporativista sofrem de uma doutrina fraca do pecado.
Alias, nós evangélicos, ironicamente, muitas vezes temos um conceito
fraco do pecado! Não temos a doutrina protestante clássica de
desconfiança no ser humano — qualquer ser humano, mesmo que seja um
cristão sério, convertido, batizado no Espírito Santo; ou mesmo vários
deles reunidos na cúpula de uma denominação. A doutrina clássica de que
os pecadores precisam se controlar mutuamente num sistema de mútua
prestação de contas é substituída por uma esperança messiânica num
grande líder político evangélico ou pela fé numa vanguarda de líderes
evangélicos com um direito divino de governar. Os partidos comunistas
antigamente tinham essa ideia da “vanguarda”. Os líderes iluminados do
partido tinham a capacidade de interpretar infalivelmente os
acontecimentos históricos e, portanto, o direito de guiar o povo. As
vanguardas marxistas desmoronaram, mas vanguardas evangélicas estão
surgindo. Devemos desconfiar de todas elas. Não se pode confiar tanto em ninguém,
por mais consagrado que pareça, por mais unção do Espírito diga ter,
por mais que reivindique governar ou legislar em nome de Deus. Nada
substitui sistemas de prestação mútua de contas, de transparência e
participação democrática. A democracia também não garante nada, mas é o
sistema menos ruim, menos perigoso, por ser o mais próximo da visão bíblica do ser humano.
A
teologia protestante clássica frisa que as relações de poder são
inevitáveis (fazem parte do tecido da vida humana), mas sempre
perigosas. O nosso meio evangélico, porém, tende a enfatizar apenas um
dos lados dessa ambivalência, de acordo com a nossa situação social.
Quando impotentes, frisamos o perigo do poder e a necessidade de
evitá-lo totalmente (“crente não se mete em política”). Mas quando o
poder se abre para nós, imaginamos a possibilidade de exercê-lo sem
ambiguidade, em nome do “povo de Deus”. Não conseguimos equilibrar os
dois lados da equação.
Se
alguém me pergunta se confio em algum político evangélico, respondo que
não. E o chocante não é a minha resposta, mas o fato de que muitos
evangélicos acham quase uma heresia dizer isso. Mas, biblicamente, não
devemos confiar nos príncipes, mesmo que sejam evangélicos e tenhamos
ajudado a colocá-los no poder! É por termos uma doutrina superficial do
pecado que nos damos mal politicamente e criamos ídolos evangélicos que
depois nos desapontam.
Cap. 13 de Religião e Política, Sim; Igreja e Estado, Não
Paul Freston, Editora Ultimato
Portal Batista
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