Aconteceu entre os dois turnos da eleição municipal, em uma cidade brasileira.
Nessa
cidade, como em muitas outras, o candidato do Partido dos Trabalhadores
havia passado para o segundo turno. Logo formou-se uma “Frente Cristã”,
cuja propaganda afirmava que chegara “o momento de unirmos forças e
dizermos um basta contra a chapa política que levanta a bandeira
vermelha, que simboliza e contempla o homossexualismo e a legalização do
aborto”. Segundo um dos líderes, um vereador recém-eleito de uma das
igrejas evangélicas mais expressivas da cidade, a Frente pretendia
“mostrar que o PT é contra a moral e contra a família”. Outro líder, o
pastor principal de outra igreja, comparou o candidato do PT ao diabo,
afirmando que, se fosse eleito, tal candidato fecharia as igrejas
evangélicas. “A bandeira vermelha do PT é sinônimo do comunismo. Temos
de lutar para impedir que Satanás tome o poder na nossa cidade. Não
podemos aceitar a união de homossexuais, o aborto, o sexo livre e a
baderna, que são defendidos pelos petistas”. Outros líderes da Frente
incluíam o pastor da maior denominação da cidade, bem como um
ex-deputado federal do Partido da Reconstrução Nacional (partido do
ex-presidente Fernando Collor). Ademais, afirmava-se que a Frente
envolvia 300 igrejas e mais de 200 mil membros.
À
primeira vista, o caso confirma a ideia de que os evangélicos são um
baluarte da direita, sempre hostis aos partidos de esquerda. No entanto,
um exame mais minucioso mostra que a realidade é bem diferente e mais
ambígua. Essa outra realidade é, sem dúvida, melhor em vários sentidos;
mas em outros é ainda mais preocupante do que a primeira impressão.
Quando
se noticiou a criação da Frente Cristã, outros evangélicos, favoráveis
ao candidato do PT, ficaram chocados. Não porque houvesse evangélicos
apoiando o outro candidato; numa democracia, nada é mais natural. Mas
ficaram chocados com as táticas usadas pela chamada Frente Cristã. Em
primeiro lugar, a Frente estava inflacionando estatísticas para dar a
impressão de que quase todos os evangélicos estavam com eles e que eles
decidiriam a eleição em favor do seu candidato. Os evangélicos
progressistas fizeram as contas: como poderia haver 200 mil votos
evangélicos para o outro candidato, quando havia somente 600 mil
eleitores na cidade, dos quais apenas uns 90 mil (a cidade devia estar
próxima da média de 15% de evangélicos no país) eram evangélicos? E que
estes 90 mil eleitores não votavam como um bloco, via-se pelos poucos
evangélicos eleitos para vereador. Obviamente, a tática da Frente Cristã
era de se fazer passar por importante, exagerando seu próprio tamanho e
dando a impressão de que o pastor controlava o voto de seus membros.
Ainda há políticos (e jornais) não-evangélicos que não perceberam que o
voto evangélico de cabresto não existe. Já houve casos de grandes
líderes de igrejas que se candidataram a deputado convictos de que
receberiam a quase totalidade dos votos de seus membros; ficaram com
somente uns 10% desses votos e não se elegeram.
Autoridade religiosa não se traduz necessariamente em autoridade política.
Autoridade religiosa não se traduz necessariamente em autoridade política.
Os
evangélicos progressistas ficaram ainda mais chocados com as afirmações
errôneas da Frente. O PT já governou muitas cidades no Brasil e nunca
fechou igrejas. Um prefeito não pode legislar sobre homossexualismo nem
aborto; e de qualquer forma o partido não tem uma linha partidária
nessas questões, mas somente opiniões pessoais divergentes. Ademais,
corriam boatos sobre uma administração anterior do PT na cidade, a qual
teria aprovado uma “Lei de Zoneamento” para dificultar a construção de
templos evangélicos. Os progressistas esclareceram, para quem quisesse
ouvir, que a lei havia sido aprovada pela Câmara Municipal nos últimos
dias de uma administração de outro partido, e que uma proposta do
prefeito petista para alterá-la havia sido rejeitada.
Enfim,
os progressistas se viam como entrando no debate democrático, buscando
convencer o cidadão evangélico por meio de um apelo “à consciência de
cada um” (2 Co 4.2). Como disse um dos seus panfletos:
“Os
membros da ‘Frente Cristã’ têm todo direito de apoiar [o seu
candidato]. Tudo dentro da democracia. E nós, evangélicos também, temos
todo direito de apoiar [o candidato do PT]. É bom que haja um debate
democrático na comunidade evangélica, cada lado tentando ganhar o maior
número possível de votos através de bons argumentos. Mas vamos fazer
isso sem chamar o outro lado de ‘demoníaco’, sem divulgar boatos
infundados sobre fechamento de igrejas, sem inflacionar estatísticas e
sem dar a impressão de que todos os evangélicos estejam do mesmo lado.
Na realidade, a comunidade evangélica está politicamente dividida... e
os membros votam de acordo com as suas consciências e não
necessariamente do jeito que o seu pastor quer. Como diz a Associação
Evangélica Brasileira (AEVB), o pastor não tem o direito de constranger
os membros da igreja na hora do voto. No segundo turno, os evangélicos
vão votar com consciência, ouvindo a Bíblia e os dois candidatos. Alguns
vão votar em [fulano], outros em [cicrano], mas todos serão irmãos em
Cristo depois. Gostaríamos que a grande maioria dos evangélicos votasse
no [candidato do PT]. Mas acima de tudo esperamos que todos os
evangélicos, de ambos os lados, se comportem de maneira digna do
evangelho de Cristo.”
Assistindo
às táticas da Frente Cristã, tive momentos em que me envergonhava de
ser evangélico. Não consegui entender por que todos os pastores e
líderes evangélicos decentes da cidade não se manifestavam publicamente
em repúdio. E quem deveria se manifestar era, sobretudo, o grupo que
apoiava o mesmo candidato que a Frente estava apoiando! Afinal, o
problema não era a candidatura em si, mas as armas que a Frente estava
usando (boatos falsos, estatísticas exageradas, uma falsa
representatividade evangélica). Os evangélicos progressistas denunciavam
esses comportamentos, mas aí parecia uma briga de desafetos políticos.
Teria sido muito mais eficaz uma manifestação unida de dezenas de outros
pastores, dizendo que não apoiavam o candidato do PT mas condenavam os
métodos da Frente. Infelizmente, muitos pensam que tudo isso não é com
eles. Não percebem que a mancha na imagem evangélica afeta a todos nós,
inclusive na evangelização. Que bonito teria sido se um bom número de
líderes, de todas as denominações e todas as posições políticas,
houvessem se pronunciado nos meios de comunicação em repúdio às táticas
da Frente. Mas o momento foi perdido.
Onde
estão os conservadores sérios do meio evangélico? Precisamos
urgentemente que eles se articulem e se manifestem, combatendo pelo que
acreditam politicamente, dentro das normas éticas e democráticas. Seria o
passo mais importante para a comunidade evangélica agora, em direção à
maturidade pública, ajudando (junto com os progressistas) a promover o
debate sério em nosso meio e a salvar a nossa imagem pública.
O
desenlace do caso fortaleceu ainda mais a minha tristeza diante do
silêncio da liderança evangélica local. Um membro descontente da maior
denominação da cidade, cujos líderes integravam a Frente, gravou a
mensagem de um culto na qual o pastor incentivava o voto no candidato da
Frente. Este candidato, dizia o pastor, aliviaria a dívida de 350 mil
reais em impostos que a igreja tinha com a prefeitura, além de fornecer
100 caminhões de terra para a construção de um novo templo. O conteúdo
da gravação foi publicado no jornal. A cidade toda ficou sabendo dos
interesses daqueles que queriam “impedir que Satanás tomasse o poder” no
município! Além disso, o vereador recém-eleito que encabeçou a Frente
apareceu depois da eleição (com o PT vitorioso) dizendo que quer fazer
parte de um “ponto de equilíbrio” na Câmara Municipal, “com uma
tendência para o PT. De 70% a 80% dos projetos deverão ser votados junto
com o PT, outros 20% serão votados com independência.” O Satanás que,
segundo a Frente, fecharia as igrejas evangélicas e legalizaria o
aborto, ainda não tinha tomado posse, mas já podia contar com o apoio da
Frente...
Cada
vez mais, tenho convicção de que estão em jogo dois modelos de
participação política evangélica. O embate entre estes dois modelos
interessa a todos os evangélicos,
inclusive os que se consideram apolíticos. Um dos modelos é sadio e o
outro é doentio. O modelo sadio parte do pressuposto de que o mais
importante agora é que os evangélicos desenvolvam uma boa prática
política. Esta boa prática resultará numa imagem pública positiva, que
por sua vez redundará em mais crescimento evangelístico. Este
crescimento numérico também levará a maior poder de barganha político, o
que deve, por sua vez, ser usado de uma forma responsável e comedida, a
fim de manter a boa presença política e repetir o ciclo. Seria,
digamos, um ciclo virtuoso.
O
modelo doentio, por outro lado, parte do pressuposto de que a
prioridade é usar o poder de barganha que já temos para favorecer o
crescimento numérico das igrejas (sem falar do poder político dos
líderes evangélicos). Mas isso resultará numa imagem pública cada vez
pior, o que por sua vez prejudicará o crescimento numérico. Portanto,
este modelo, que predomina hoje no meio evangélico, a longo prazo
diminuirá o crescimento das igrejas. Será um ciclo vicioso.
Em outras palavras, se o objetivo for o crescimento da igreja, o
primeiro modelo é melhor. Mas se o objetivo for, na realidade, a
obtenção egoísta de poder político por parte de líderes evangélicos,
continuemos com o segundo modelo... e paguemos o preço.
Cap. 14 de Religião e Política, Sim; Igreja e Estado, Não
Paul Freston, Editora Ultimato
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