Por Carlo Carrenho
“Ando cansado da dicotomia maniqueísta cultivada por grande parte da Igreja Evangélica.”
Gosto muito de um tipo de literatura pouco comum no Brasil. Falo dos
livros de memórias, que são um tanto diferentes das autobiografias,
apesar de seu conteúdo ser sempre autobiográfico. As diferenças residem
no fato de que livros de memórias não têm a obrigação de serem completos
e na total liberdade do autor para selecionar as passagens de sua vida
que gostaria de relatar – e mesmo desviar-se delas para contar outras
histórias. No mês passado, por exemplo, li o livro Red Summer,
onde Bill Carter descreve seu dia-a-dia nos quatro verões que passou no
Alasca pescando salmão profissionalmente. Outro autor de livros de
memórias que admiro é Donald Miller. Como os pingüins me ajudaram a entender Deus e Fé em Deus e pé na tábua (Thomas Nelson Brasil) são obras que todo cristão deveria ler.
Outra obra do gênero, Grace (Eventually): Thoughts on Faith, é de uma de minhas escritoras cristãs prediletas, Anne Lammott. Ela surpreende ao deixar claro que é pro-choice – pró-escolha – em relação ao aborto. Os pro-choice são diametralmente opostos aos pro-life, ou pró-vida, e defendem o direito de escolha das mulheres em manter ou não uma gravidez. Já os pro-life
são radicalmente contra qualquer forma de aborto. A coragem da autora
em assumir sua posição me inspirou a escrever este artigo. É que há
muito tempo ando cansado da dicotomia maniqueísta cultivada por grande
parte da Igreja Evangélica. Tudo é inteiramente bom ou completamente
mau; não existe meio-termo. Este maniqueísmo se manifesta
particularmente em questões ligadas à moral e à sexualidade. Lembro-me
que, quando era adolescente, um simples flerte ou paquera poderia, na
visão dos membros da igreja, caracterizar uma “defraudação” da garota,
caso eu não tivesse cem por cento de certeza do meu interesse por ela.
Resultado: passava horas agoniado, tentando descobrir a certeza moral de
meus próprios sentimentos, porque, no maniqueísmo evangélico, a prática
da sensualidade era, e continua sendo, sempre associada ao pecado, ao
mal.
Atualmente, há duas questões em que essa dualidade opressiva se
manifesta com maior vigor dentro da comunidade evangélica: a legalização
do aborto e do casamento gay. E já vou avisando logo de cara: sou a
favor da legalização tanto de uma coisa, quanto da outra. Pronto, falei!
E não, não sou a favor do aborto e do homossexualismo! Parece
contraditório, mas não é. Embora eu jamais apoiaria um aborto, acho que
as pessoas devem ter o direito de escolher. Da mesma forma – embora,
tomando-se por base os textos bíblicos acerca da questão, pareça
impossível não condenar o homossexualismo –, defenderei com todas as
minhas forças que os gays tenham direitos absolutamente iguais aos dos
heterossexuais. A moral individual ou de um segmento social jamais deve
ser imposta sobre a sociedade como um todo; esta é uma premissa básica
da liberdade. Em outras palavras, eu não posso exigir de um não-cristão
que ele se comporte de acordo com os mandamentos bíblicos, da mesma
forma que um muçulmano ou judeu não pode exigir que eu viva sob seus
preceitos morais.
O presbiteriano C. Everett Koop, ex-chefe do Departamento de Saúde dos
Estados Unidos, adotou postura semelhante ao preparar um relatório sobre
a Aids. Embora pregasse a abstinência sexual e a monogamia, ele
defendeu a distribuição de preservativos e a educação sexual precoce
como forma de evitar que a doença se alastrasse, chocando inúmeros
evangélicos conservadores. Koop se justificava dizendo que era o chefe
do Departamento de Saúde dos heterossexuais e dos homossexuais, do jovem
e do velho, do moral e do imoral. Ele ainda alertou seus colegas
cristãos: “Vocês podem odiar o pecado, mas precisam amar o pecador”.
Embora condenasse o homossexualismo, Koop foi aclamado por 12 mil
pessoas em um evento da comunidade gay de Boston – afinal, ele sempre
amou os homossexuais.
Se o próprio Deus nos legou o livre arbítrio ou, no mínimo, permitiu
que cada ser humano escolha entre pecar ou não, não cabe a nós criar
legislações que oprimam aqueles que querem uma vida diferente da que
levamos como cristãos. Nossa obrigação é amar ao próximo, seja ele gay
ou não, tenha ele optado ou não por um aborto. Quando aprendermos a amar
aqueles que são diferentes, seremos mais capazes de influenciá-los do
que por meio de legislações opressoras anti-libertárias.
É claro que a questão do aborto é um tema complicado e que há inúmeros
argumentos para sua criminalização, por se tratar de uma violência
contra a vida humana. Não tenho defesa para alguns argumentos pro-life.
O mais forte deles foi levantado por um jurista que não aceitava que
matar um recém-nascido fosse considerado homicídio enquanto um aborto
aos 9 meses de gravidez não o era. Touché. Da mesma forma, não
me parece fazer sentido condenar o aborto de um grupo de poucas células
nos primeiros dias ou semanas de gravidez e aceitar os métodos
anti-concepcionais.
Cristianismo Hoje
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