Alfabetizar
é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de
“alfabeto“. “Alfabeto“ é o conjunto das letras
de uma língua, colocadas numa certa ordem. É a mesma
coisa que “abecedário“. A palavra “alfabeto“ é
formada com as duas primeiras letras do alfabeto grego:
“alfa“ e “beta“. E “abecedário“, com a junção
das quatro primeiras letras do nosso alfabeto: “a“,
“b“, “c“ e “d“. Assim sendo, pensei a
possibilidade engraçada de que “abecedarizar“,
palavra inexistente, pudesse ser sinônima de
“alfabetizar“...
“Alfabetizar“, palavra aparentemente inocente, contém
uma teoria de como se aprende a ler. Aprende-se a ler
aprendendo-se as letras do alfabeto. Primeiro as letras.
Depois, juntando-se as letras, as sílabas. Depois,
juntando-se as sílabas, aparecem as palavras...
E assim era. Lembro-me da criançada repetindo em coro,
sob a regência da professora: “be a ba; be e be; be i
bi; be o bo; be u bu“... Estou olhando para um cartão
postal, miniatura de um dos cartazes que antigamente se
usavam como tema de redação: uma menina cacheada,
deitada de bruços sobre um divã, queixo apoiado na mão,
tendo à sua frente um livro aberto onde se vê
“fa“, “fe“, “fi“, “fo“, “fu“...
(Centro de Referência do Professor, Centro de Memória,
Praça da Liberdade, Belo Horizonte, MG.)
Se é assim que se ensina a ler, ensinando as letras,
imagino que o ensino da música deveria se chamar
“dorremizar“: aprender o dó, o ré, o mi...
Juntam-se as notas e a música aparece! Posso imaginar,
então, uma aula de iniciação musical em que os alunos
ficassem repetindo as notas, sob a regência da
professora, na esperança de que, da repetição das
notas, a música aparecesse...
Todo mundo sabe que não é assim que se ensina música.
A mãe pega o nenezinho e o embala, cantando uma canção
de ninar. E o nenezinho entende a canção. O que o
nenezinho ouve é a música, e não cada nota,
separadamente! E a evidência da sua compreensão está
no fato de que ele se tranquiliza e dorme – mesmo nada
sabendo sobre notas! Eu aprendi a gostar de música clássica
muito antes de saber as notas: minha mãe as tocava ao
piano e elas ficaram gravadas na minha cabeça. Somente
depois, já fascinado pela música, fui aprender as
notas – porque queria tocar piano. A aprendizagem da música
começa como percepção de uma totalidade – e nunca
com o conhecimento das partes.
Isso é verdadeiro também sobre aprender a ler. Tudo
começa quando a criança fica fascinada com as coisas
maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as
letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a estória.
A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem
das letras: quando alguém lê e a criança escuta com
prazer. “Erotizada“ – sim, erotizada! – pelas
delícias da leitura ouvida, a criança se volta para
aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja
decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a
chave que abre o mundo das delícias que moram no livro!
Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto
sem precisar da mediação da pessoa que o está lendo.
No primeiro momento as delícias do texto se encontram
na fala do professor. Usando uma sugestão de Melanie
Klein, o professor, no ato de ler para os seus alunos,
é o “seio bom“, o mediador que liga o aluno ao
prazer do texto. Confesso nunca ter tido prazer algum em
aulas de gramática ou de análise sintática. Não foi
nelas que aprendi as delícias da literatura. Mas me
lembro com alegria das aulas de leitura. Na verdade, não
eram aulas. Eram concertos. A professor lia,
interpretava o texto, e nós ouvíamos extasiados. Ninguém
falava. Antes de ler Monteiro Lobato, eu o ouvi. E o bom
era que não havia provas sobre aquelas aulas. Era
prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a
experiência prazerosa de leitura – experiência
vagabunda! – e a experiência de ler a fim de
responder questionários de interpretação e compreensão.
Era sempre uma tristeza quando a professora fechava o
livro...
Vejo, assim, a cena original: a mãe ou o pai, livro
aberto, lendo para o filho... Essa experiência é o
aperitivo que ficará para sempre guardado na memória
afetiva da criança. Na ausência da mãe ou do pai a
criança olhará para o livro com desejo e inveja.
Desejo, porque ela quer experimentar as delícias que
estão contidas nas palavras. E inveja, porque ela
gostaria de ter o saber do pai e da mãe: eles são
aqueles que têm a chave que abre as portas daquele
mundo maravilhoso! Roland Barthes faz uso de uma linda
metáfora poética para descrever o que ele desejava
fazer, como professor: maternagem: continuar a fazer
aquilo que a mãe faz. É isso mesmo: na escola, o
professor deverá continuar o processo de leitura
afetuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida,
ela pedirá: “Por favor, me ensine! Eu quero poder
entrar no livro por conta própria...“
Toda aprendizagem começa com um pedido. Se não houver
o pedido, a aprendizagem não acontecerá. Há aquele
velho ditado: “É fácil levar a égua até o meio do
ribeirão. O difícil é convencer a égua a beber“.
Traduzido pela Adélia Prado: “Não quero faca nem
queijo. Quero é fome“. Metáfora para o professor:
cozinheiro, Babette, que serve o aperitivo para que a
criança tenha fome e deseje comer o texto...
Onde se encontra o prazer do texto? Onde se encontra o
seu poder de seduzir? Tive a resposta para essa questão
acidentalmente, sem que a tivesse procurado. Ele me
disse que havia lido um lindo poema de Fernando Pessoa,
e citou a primeira frase. Fiquei feliz porque eu também
amava aquele poema. Aí ele começou a lê-lo.
Estremeci. O poema – aquele poema que eu amava –
estava horrível na sua leitura. As palavras que ele lia
eram as palavras certas. Mas alguma coisa estava errada!
A música estava errada! Todo texto tem dois elementos:
as palavras, com o seu significado. E a música...
Percebi, então, que todo texto literário se assemelha
à música. Uma sonata de Mozart, por exemplo. A sua
“letra“ está gravada no papel: as notas. Mas assim,
escrita no papel, a sonata não existe como experiência
estética. Está morta. É preciso que um intérprete dê
vida às notas mortas. Martha Argerich, pianista suprema
(sua interpretação do concerto n. 3 de Rachmaninoff me
convenceu da superioridade das mulheres...) as toca:
seus dedos deslizam leves, rápidos, vigorosos,
vagarosos, suaves, nenhum deslize, nenhum tropeção:
estamos possuídos pela beleza. A mesma partitura, as
mesmas notas, nas mãos de um pianeiro: o toque é duro,
sem leveza, tropeções, hesitações, esbarros, erros:
é o horror, o desejo que o fim chegue logo.
Todo texto literário é uma partitura musical. As
palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista,
se ele domina a técnica, se ele surfa sobre as
palavras, se ele está possuído pelo texto – a beleza
acontece. E o texto se apossa do corpo de quem ouve. Mas
se aquele que lê não domina a técnica, se ele luta
com as palavras, se ele não desliza sobre elas – a
leitura não produz prazer: queremos que ela termine
logo. Assim, quem ensina a ler, isto é, aquele que lê
para que seus alunos tenham prazer no texto, tem de ser
um artista. Só deveria ler aquele que está possuído
pelo texto que lê. Por isso eu acho que deveria ser
estabelecida em nossas escolas a prática de
“concertos de leitura“. Se há concertos de música
erudita, jazz e MPB – por que não concertos de
leitura? Ouvindo, os alunos experimentarão os prazeres
do ler. E acontecerá com a leitura o mesmo que acontece
com a música: depois de ser picado pela sua beleza é
impossível esquecer. Leitura é droga perigosa:
vicia... Se os jovens não gostam de ler, a culpa não
é deles. Foram forçados a aprender tantas coisas sobre
os textos - gramática, usos da partícula “se“, dígrafos,
encontros consonantais, análise sintática –que não
houve tempo para serem iniciados na única coisa que
importa: a beleza musical do texto literário: foi-lhes
ensinada a anatomia morta do texto e não a sua erótica
viva. Ler é fazer amor com as palavras. E essa transa
literária se inicia antes que as crianças saibam os
nomes das letras. Sem saber ler elas já são sensíveis
à beleza. E a missão do professor? Mestre do
kama-sutra da leitura...
APERITIVOS
1. “Analfabeta não é a pessoa que não sabe ler. É
a pessoa que, sabendo ler, não gosta de ler.“ (Quem
foi que disse isso? Acho que foi o Mário Quintana).
2. A menininha de 9 anos me explicou como as crianças
na sua escola aprendiam a ler: “Aqui na Escola da
Ponte não aprendemos letras e silabas. Só aprendemos
totalidades...“
3. Os compositores colocam em suas partituras indicações
para orientar o intérprete: lento, presto, adagio,
alegretto, forte, piano, ralentando. Os escritores
deveriam fazer o mesmo com seus textos. Há textos que
devem ser lidos lentamente, expressivamente,
tristemente. Outros que exigem leveza, rapidez, riso. O
leitor experiente não precisa dessas indicações. Mas
elas poderiam ajudar os principiantes.
4. “Mais valem dois marimbondos voando que um na mão“
(Almanak do Aluá).
5. Graciliano Ramos relata que, quando menino, na escola
lhe ensinaram um ditado: “Fale pouco e bem e ter-te-ão
por alguém“. Ele repetia o ditado mas ficava com uma
dúvida: “Quem será esse ‘Tertião’?“
(Correio Popular, Caderno C, 19/07/2001.)
FONTE: Casa Rubem Alves
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